PROPOSTA DE DOAÇÃO PRESUMIDA APÓS 25 ANOS

Sergio Ibiapina F. Costa1

           Sem alarde, encontram-se em tramitação, no Senado Federal, dois projetos de lei (PLs) que propõem mudanças na lei dos transplantes de órgãos e tecidos. O mais recente, PL nº 3.176/2019, de autoria do falecido Senador Major Olímpio, tem a seguinte ementa: “Altera a Lei nº 9.434/97 e a Lei nº 8.072/90, para tornar presumida a doação de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, tornar hediondos os crimes que especifica, permitir campanhas para arrecadação de fundos para financiamento de transplante ou enxerto e dá outras providências”.

O art. 2º do referido PL preconiza a seguinte redação para o art. 4º da Lei nº 9.434/97:

“Art. 4º Fica presumida a autorização para doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, de pessoas maiores de 16 (dezesseis) anos, para finalidade de transplantes ou terapêutica post mortem, salvo manifestação de vontade em contrário, nos termos desta lei.”

Já o § 6º do citado art. 4º disporia:

“§ 6º Todo indivíduo que não queira ser doador de órgãos e tecidos deverá registrar em documento público de identidade, o seu desejo de não ser doador de órgãos e tecidos.” (sic)

               Em suas justificativas, o parlamentar registra diversos países que adotam critério de doação presumida, de acordo com as suas especificidades, a exemplo da Espanha, França, Bélgica, Portugal, Noruega, Croácia, Áustria, Holanda e República Checa, mantendo-se a ideia fulcral do consentimento como regra, ressalvada a manifestação de vontade em contrário. Ainda segundo o parlamentar, o modelo adotado pelo Brasil, em conformidade com a Lei nº 9.434/97, tem se mostrado pouco efetivo, não se atingindo um patamar satisfatório de doações.

               Por sua vez, encontra-se em tramitação, há quase uma década, o PL nº 405/2012, cuja ementa tem o seguinte teor: “Altera a Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e dá outras providências, para instituir a doação presumida de órgãos”. Esse Projeto, de autoria do Senador Humberto Costa, reproduz, ipsis litteris, a redação original da Lei nº 9.434/97, posteriormente modificada por redação dada pela Lei nº 10.211/2001, que sepultou de uma vez por todas a pretensão de se adotar a doação presumida, retornando-se ao critério de doação consentida, até então vigente de acordo com a Lei nº 8.489/1992 e o Decreto nº 879/1993, que a regulamentava.
Dê-se ciência de que, desde 30/05/2019, o PL em questão se encontra para relatoria do Senador Rogério Carvalho.

               Atente-se ao que propõe o PL nº 405/2012 para a redação do caput art. 4º, e de seu § 6º, da Lei nº 9.434/97:

“Art. 4º Salvo manifestação de vontade em contrário, nos termos da Lei, presume-se autorizada a doação post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para transplantes ou outra finalidade terapêutica.
……………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………………
§ 6º A pessoa que não desejar dispor de seus órgãos, tecidos ou partes do corpo para a doação referida no caput deverá solicitar a gravação da expressão ‘não doador de órgãos e tecidos’ em documento público de identidade.”

               As razões expostas pelo Senador Humberto Costa apontam para a estagnação no número de doadores desde a lei dos transplantes de 1997, após ter sido modificado o texto original, com a anuência de transplantadores e da sociedade, por considerarem que não era com a mudança da lei que prosperaria o número de doadores.

               Como se observa, ambos os PLs apresentam redações que revogam em sua essência o escopo da lei de doação consentida ora em vigor, retornando à premissa de doação presumida, a exemplo de legislações adotadas por outros países, particularmente europeus, levando em consideração o número de doadores para cada milhão da população (pmp). Lembre-se que, enquanto a Espanha lidera há décadas o ranking mundial com 45 doadores pmp, não se pode deixar de citar que Estados do Sul do Brasil se aproximam de índices do modelo espanhol. Ademais, registre-se que o Brasil, em números absolutos, de acordo com a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), é o segundo maior transplantador do planeta, permanecendo atrás somente dos EUA. Todavia, não há por que negar que a nossa fila de espera por  transplantes de órgãos aproxima-se de 50 mil pacientes para continuarem vivos.

               Isso posto, convém rever, historicamente, o que motivou, à época (1997), a adesão ao modelo de doação presumida. Por outro lado, indaga-se se seria possível, após 25 anos, responder afirmativamente que o país adquiriu maturidade para adotar o critério de doação presumida, na perspectiva de aumentar o número de doadores.

               No crepúsculo da Comissão de relatoria da Lei nº 9.434/1997, em caráter terminativo, antes de ir ao plenário, o Senador Darcy Ribeiro, autor do projeto, incentivou Luiz Fernando dos Santos a, pelo prazo de dois dias, acampar diante do Congresso numa greve de fome atípica. Artigo de autoria do referido Senador à Folha de S. Paulo, na edição de 4 de março de 1996, intitulado “Transplante de órgãos”, assim esclarece:

“a greve dele era negar-se a fazer hemodiálise até morrer, a fim de pressionar os senadores a votarem a lei […]. Com sua greve atípica, conseguimos que fosse dada urgência ao projeto que foi votado e aprovado por unanimidade. Seguiu já para a Câmara dos Deputados, onde precisamos renovar as pressões para que seja prontamente aprovado. […] Essa lei que eu propus visa superar a situação vergonhosa do Brasil nessa matéria. Somos o único país que exige, para que um órgão de um morto seja transplantado para salvar um vivo, que o morto, enquanto vivo, procure um cartório e faça a competente doação. […]”

               Além de considerar a Lei nº 8.489/92 anacrônica, o Senador argumenta, no artigo de sua autoria:

“a lei que proponho inverte o procedimento, determinando que deve procurar um cartório quem não queira doar nada do seu corpo para salvar vidas. Essa minoria é que deve ir a qualquer cartório para obter um carimbo de não-doador gravado na sua carteira de identidade. Assim se asseguram os direitos de quem tem razões para não ser doador – como ocorre com os judeus, por motivação religiosa […].”

               Por seu turno, em capítulo de livro sobre doação presumida, o Prof. Agenor Spallini Ferraz rebate os argumentos de Darcy Ribeiro e tece as seguintes considerações:

“uma das razões para a escassez de órgãos é o alto índice de negativa familiar para a doação, que, em alguns países, chega a 50% dos casos. Uma das providências para minimizar esta situação são as campanhas para sensibilizar a população sobre a importância das doações. Entre nós, na maioria das vezes, essas campanhas são mal conduzidas e voltadas para alvos errados.”

               Acrescenta Ferraz que a matéria, a despeito de se tratar de tema polêmico, impõe, entretanto, duas considerações:

“O cidadão tem o direito de ter sua vontade respeitada após sua morte? Será que é possível resolver o problema de escassez de doadores por meio de leis?”

               Comparando modalidades de doação presumida adotadas em alguns países, que possibilitam a família ser consultada e objetar a doação, os resultados são melhores, a exemplo da Espanha e Bélgica, com melhores indicadores de doadores pmp. No entanto, pode-se afirmar que o problema no Brasil não se cinge à legislação. A lei de transplante de 1992, além de definir a doação como consentida, incorporava os critérios de morte encefálica, tornando-a de notificação compulsória, e a adoção de cadastro técnico único, dentre outras definições. Dessa forma, o país não carecia de uma nova lei em 1997; os problemas à época eram de natureza estruturais em nosso sistema de saúde, apontados como passíveis de solução por vários transplantadores. Aduz Ferraz que “a prática mostrava que nosso problema não era falta de doadores, mas sim falta de condições para identificá-los e aproveitá-los.”

               Logo após a implementação da Lei nº 9.434/1997, o que se verificou foi uma “sequência de tropeços por parte da mídia e um princípio de pânico da população, o que levou a sociedade a uma corrida aos postos de fornecimento de documentos com o intuito de se declarar não-doador.” Soube-se de relato de Conselheiros, ao serem consultados por colegas médicos sobre a possibilidade de se dispor de duas identidades, uma para uso na cidade onde morava e outra constando a termo de não-doador, que seria utilizada quando de deslocamentos para outros Estados. Certamente, seriam profissionais que, naquele contexto, rejeitavam os critérios da morte encefálica como sinônimo de morte.

               Somente em 6 de outubro de 1999, a Presidência da República editou a Medida Provisória que posteriormente se transformaria em lei, alterando a redação do art. 4º da Lei nº 9.434/97, acrescentando o seguinte parágrafo e tornando sem efeito a doação presumida:

§ 6º na ausência de manifestação da vontade do potencial doador, o pai, mãe, o filho ou o cônjuge poderá manifestar-se contrariamente à doação, o que será obrigatoriamente acatado pelas equipes de transplantes e remoção.

               Ademais, segundo Ferraz, “a doação presumida também levanta uma questão da ética social não cogitada pela ética médica: o que acontecerá comigo se, ao me declarar não-doador, necessitar de um transplante?”

               À exceção de algumas ativas Centrais Estaduais de Transplantes (CETs), nem todos os estabelecimentos de saúde do país dispõem de Comissões Intra-Hospitalares de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes (CIHDOTT) e Organizações de Procura de Órgãos (OPO), que deveriam atuar de forma integrada às Centrais Estaduais (CETs) e ao Sistema Nacional de Transplantes (SNT). Registra-se que ainda não foram estruturadas em todas as Unidades da Federação, de acordo com o que preconiza o Decreto nº 9.175/2017 e a Resolução CFM nº 2.173/2017.

           Isso nos leva à convicção de que o crescimento na oferta de órgãos no país não seria proporcionado somente ao oferecer à população novo texto normativo, com o gravame de ter a mesma redação de lei anteriormente rejeitada. Portanto, acatar qualquer proposta dos PLs alegando maturidade para acolher a doação presumida e implementá-la, poderá desarticular o pouco que ainda dispomos de organização da malha do SNT. Compete ao Ministério da Saúde (MS), integrado ao SNT e demais entes que atuam nesse campo, proporcionar as condições essenciais de manutenção dos CETs, caso se objetive avultar o número de doadores, levando-se em consideração as recomendações éticas e legais de acolhimento familiar em todas as etapas, desde o momento do diagnóstico de morte encefálica, reduzindo, assim, as chances da recusa familiar por negação do diagnóstico, respeitando a vontade do doador, caso tenha manifestado em vida o desejo de doar seus órgãos por ocasião da morte.

              Desta forma, espera-se que não haja precipitação do parlamento em considerar o momento oportuno para adesão de mudança com retrocesso da lei vigente e do decreto que a regulamenta. Não seria exagero que o parlamento promovesse audiências públicas, antes de decidir de forma açodada. Portanto, sejamos prudentes!

 

 

1Vice-corregedor do Conselho Regional de Medicina do Estado do Piauí.

2FERRAZ AS. Doação consentida x doação presumida: um problema ético ou um dilema social? A bioética no século XXI. GARRAFA V, COSTA SIF (organizadores). Brasília-DF. Editora Universidade de Brasília. 2000, p. 151-158.

 

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