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O MÉDICO, O BOMBEIRO E A PODÓLOGA

sergio ibiapina

Sérgio Ibiapina Ferreira Costa[*]

Com a chave na mão

quer abrir a porta,

não existe porta…”

Drummond de Andrade

Há dias, recebi de colega médico uma mensagem. O texto provocou em mim uma série de reflexões que gostaria de compartilhar, motivo pelo qual passo a transcrevê-la na íntegra:

Caro amigo, temporizei enviar-lhe notícias, na esperança de que algo de novo despontasse em nossa profissão. Então, tomei a liberdade de confessar-lhe os seguintes acontecimentos:

Nos últimos três meses, afastei-me do consultório e creio que, provavelmente, em caráter definitivo. Posso apresentar como justificativa, além dos eventos adversos que me ameaçam, determinados pelo novo coronavírus, o fato de já exercer a profissão em consultório, há 45 anos, no atendimento vespertino de insólitos pacientes portadores de plano de saúde, ao valor unitário de R$ 80,00 por consulta, com direito a retornos pelo prazo de um mês, gozando ainda de prerrogativas, ou seja, atender ligações quantas forem necessárias, prazo mensal para apresentar resultados de exames e desenlace do tratamento instituído. Como prestador de serviço, sempre fui ciente da obrigatoriedade sobre os descontos dos impostos que, a depender do apurado mensal, aproxima-se de 30% do valor auferido.

Na condição de internista, todos os procedimentos diagnósticos e terapêuticos que escapam das minhas mãos são transferidos a terceiros, o que, por um lado, não me deixa oprimido por não me envolver em conflito de interesse, ou seja, ter de solicitar e realizar procedimentos diagnósticos e terapêuticos inerentes ao caso acudido.

Ao relatar o valor da consulta recebido pelo Plano de Saúde à profissional da área da Saúde a quem eu prestava cuidados, causou-lhe perplexidade, mas a mesma quis reconfortar-me, informando que o valor de uma consulta médica especializada pelo SUS situava-se no patamar de R$ 10,00. Perguntou-me se eu saberia informá-la o que eu seria capaz de adquirir de posse dessa quantia. Para não evitar a indagação, arrisquei o preço de um litro de leite, mas não soube dizer qual marca, já que se trata de iguaria que não costumo consumir.

Chegando em casa, deparei-me com vazamento em uma das torneiras do banheiro. Tive de recorrer aos cuidados do bombeiro que, habitualmente, me atende com presteza e resolve as demandas, utilizando-se de chaves e insumos que carrega em sua maleta. O conserto não demorou mais do que 10 minutos. Aproveitei para pedir que observasse a torneira vizinha que emperrava no momento de abrir. O tempo gasto não ultrapassou cinco minutos, mas paguei, sem recibo, por ambas as intervenções, o valor de R$ 120,00.

Ao me deslocar para acompanhá-lo até a porta, não tive o cuidado de identificar a maleta que se encontrava estacionada nas proximidades. No dia seguinte, não consegui utilizar o sapato e observei processo inflamatório no canto da unha do primeiro pododáctilo esquerdo. Tentei minimizar a algia que se exacerbava até com o lençol, utilizando a imersão do pé em água quente durante 10 minutos, quatro vezes por dia. Observei que o canto da unha havia penetrado na cutícula e resolvi chamar a podóloga para examinar e liberar o segmento da unha no trauma. Tarefa executada, a despeito de ser extremamente dolorosa, sem necessidade de retorno, pois depois de uma semana já era possível utilizar sapato. O pagamento do tratamento domiciliar custou-me R$ 100,00, sem recibo, pago em espécie, após o procedimento e sem necessidade de retorno.

Claro que não disponho da arte para exercer atividades de bombeiro ou podólogo. A opção que me resta é retornar ao consultório para atender pacientes ao preço de R$ 80,00, com descontos mensais de impostos e insumos, a iniciar-se pelo valor de aluguel e secretária que ultrapassam aquilo que me depositam em conta. Diferentemente do bombeiro e da podóloga, eu teria de continuar pagando para trabalhar. A insanidade não pode extrapolar o bom senso de não fechar as portas. Quem sabe, recorrer a um curso de chaveiro, com o propósito de abrir portas para um futuro melhor! Assim, recorrerei ao poema de Drumond: “E agora, José? Com a chave na mão quer[o] abrir a porta, não existe porta…”. E agora?

Em resposta à epístola, fazem-se necessárias algumas considerações, por ter ciência de sua exemplar graduação em Medicina, profissão a serviço da humanidade que abraçou com denodo e por zelar os princípios deontológicos contidos no Código de Ética Médica. Faço menção ao inciso III dos Princípios Fundamentais do citado Código, ao recomendar: “Para exercer a medicina com honra e dignidade, o médico necessita de boas condições de trabalho e ser remunerado de forma justa (grifo nosso).” Impõe-se, nos exemplos citados na carta, que se saiba diferenciar profissão de ocupação, não que esta não mereça o devido respeito, mas não é possível ficar indiferente à ideia de que o médico, para exercer seu mister com dignidade, necessita de uma remuneração condizente que não pode nivelar-se às tarefas isentas de exigências acadêmicas obrigatórias. Assim, recomendo ao colega retornar ao labor que tem por missão salvar vidas, o que não lhe impedirá de ocupar-se, nas horas vagas, de confeccionar as chaves que lhe poderão abrir desfiladeiros estreitos de nossa profissão no presente.

* Diretor-Tesoureiro do Conselho Regional de Medicina do Estado do Piaui. Especialista em Clínica Médica e Bioética.

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